Depois de enviar à Assembleia Legislativa o projeto de privatização da Sabesp, a companhia paulista de saneamento, e prometer fazer o mesmo com linhas de trem da CPTM e do Metrô, o governador Tarcísio de Freitas anunciou que será realizado um estudo para estabelecer uma parceria público-privada na Fundação Casa, responsável pelo cumprimento das medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei.
Em 18 de outubro, Freitas reuniu no Palácio dos Bandeirantes uma força-tarefa para viabilizar a PPP. Entre os presentes estavam o vice-governador Felício Ramuth, que também preside o Conselho Diretor do Programa Estadual de Desestatização, e o secretário de Parcerias em Investimentos, Rafael Antonio Cren Benini. Ao entregar a gestão da Fundação Casa para a iniciativa privada, o governo pretende “melhorar a eficiência do gasto público”, afirma André Isper Rodrigues Barnabé, secretário-executivo do Comitê Estadual de Desestatização. O modelo adotado seria o de concessão administrativa para prestação de serviços.
Os servidores da Fundação Casa queixam-se, porém, da falta de transparência do governo, que nem sequer se preocupou em consultá-los a respeito da iniciativa. Como há tempos o governo não repõe profissionais da área nem investe na estrutura das unidades, eles já imaginavam que o Executivo preparava alguma surpresa. Dois dias antes da reunião no Palácio dos Bandeirantes, trabalhadores do sistema socioeducativo e representantes da sociedade civil organizada participaram de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo para denunciar a privatização em curso e preparar a categoria para o que está por vir.
Os servidores da rede socioeducativa queixam-se da falta de transparência do governo paulista
De acordo com o deputado Carlos Giannazzi, do PSOL, ainda não existe uma proposta formal apresentada ao Legislativo, mas os parlamentares da oposição se mobilizam para resistir a qualquer iniciativa privatista.
“Como o governador publicou no Diário Oficial que serão iniciados estudos para uma PPP na Fundação Casa, achamos que era o caso de fazer uma audiência e antecipar a análise do tema.” No Brasil, existem dois projetos piloto de PPP em instituições socioeducativas, um em Minas Gerais, sob a gestão de Romeu Zema, do Novo, e outra em Santa Catarina, estado governado por Jorginho Mello, do PL de Jair Bolsonaro.
O diagnóstico apresentado pela servidora Cláudia Maria de Jesus, atual presidente do Sindicato da Socioeducação de São Paulo, o Sitsesp, é preocupante. Vários setores da Fundação Casa já foram confiados à iniciativa privada, com a terceirização dos serviços de transporte, vigilância, lavanderia e parte da cozinha. Desde 2014 não são realizado concursos para repor os servidores que se aposentam ou pedem exoneração. Ou seja, o funcionário mais novo da instituição tem pelo menos dez anos de casa. “Só soubemos da existência de um projeto de parceria público-privada após a mídia noticiar. Até o momento, nada chegou até nós de forma clara, nos sentimos inseguros e descartados.”
Segundo a dirigente sindical, os servidores da Fundação Casa, mesmo com as condições de trabalho cada vez mais precárias, prezam pelo bom relacionamento com os jovens internos e têm dedicação exclusiva. “Nos últimos anos, a situação piorou muito. Passamos por dois programas de demissão incentivada, e isso reduziu drasticamente o quadro de pessoal.
Trabalhamos muito desfalcados.” O Decreto Estadual nº 60.609, de 3 de julho de 2014, prevê 14,4 mil funcionários no quadro de cargos permanentes da instituição, mas atualmente o total gira em torno de 10,7 mil. Dos 157 centros de internação, somente 110 continuam ativos – segundo o governo paulista, devido à baixa lotação das unidades. “Nos grupos de WhatsApp, muitos temem que sua unidade será a próxima aser fechada, mas nada disso chega oficialmente para nós. Estamos no escuro.”
Alerta. Proposta fere autonomia dos profissionais, avalia Alves –
Imagem: Vinícius Loures/Ag. Câmara
Diante do cenário de sucateamento, os servidores da Fundação Casa fizeram uma greve recentemente, que durou 38 dias. O principal item da pauta de reivindicações era a reposição salarial de acordo com a inflação, mas eles também denunciaram a falta de pessoal. “Hoje, é comum ter apenas dois profissionais de plantão para cuidar de dezenas de jovens, aí surgem as ocorrências contra os funcionários ou entre os próprios adolescentes”, lamenta César Horta, que trabalha no sistema socioeducativo há 25 anos. Ele recorda que, somente no ano passado, dois colegas foram assassinados durante o expediente, em conflitos com os internos. “Estamos em contato permanente com deputados estaduais do campo progressista, mas talvez eles não tenham força para barrar o avanço da PPP. Por isso, tivemos algumas audiências também em Brasília, para alertar o governo federal sobre os riscos dessa proposta.”
Defensora pública e integrante da Coalizão pela Socioeducação, que reúne 57 entidades da sociedade civil, Lígia Mafei Guidi lamenta a transferência da responsabilidade para a iniciativa privada.
“Normalmente, um jovem que chega à Fundação Casa teve uma série de direitos violados e de políticas públicas negadas a ele. É uma obrigação do Estado cuidar desse adolescente de forma adequada, ele não pode ser visto como problema.” Guidi lembra que já existiram tentativas de “cogestão” com organizações sociais em São Paulo, sob o governo do tucano João Doria, e ainda hoje há entidades conveniadas atuando no regime semiaberto.
“Essas entidades precisam manter um número mínimo de atendimentos para justificar o convênio com o Poder Público, o que parece ser incompatível com a lógica de um sistema socioeducacional que precisa ser breve e excepcional”, avalia a defensora pública. Ela observa que, nos últimos anos, houve redução do número de internos, algo que deve ser celebrado. “Isto seria possível se o objetivo do serviço fosse obter lucro?”
“O encarceramento em massa pode ser bastante lucrativo”, alerta especialista
Ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves acredita que estabelecer uma parceria público-privada no sistema socioeducativo pode gerar situações de conflito de interesses.
“Quem defende esse tipo de parceria são os mesmos setores conservadores que pregam a redução da maioridade penal e o aumento do período de internação. É importante lembrar, porém, que existem empresários interessados em lucrar com o encarceramento em massa”, alerta o advogado, que foi presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conanda. O especialista alerta, ainda, para o risco de grupos empresariais intensificarem o lobby no Congresso “para recrudescer a legislação destinada aos envolvidos em atos infracionais”.
A privatização da Fundação Casa também pode tolher a autonomia dos profissionais que atuam no sistema socioeducativo, acrescenta Alves. “Hoje, os assistentes sociais e os psicólogos são funcionários públicos. Uma vez contratados pela iniciativa privada, não sabemos se poderão atuar com independência ou se serão pressionados a ampliar o tempo de internação dos jovens, se serão direcionados a executar um trabalho para favorecer a empresa contratante, mas contrário ao interesse público. É muito grave.”
Professora titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Denise Auad reforça as preocupações de Alves com a PPP. “Como teremos garantias de que os pilares que baseiam o sistema socioeducativo hoje serão respeitados pela iniciativa privada?”, questiona. Coordenadora da pós-graduação em Direito das Diversidades e Inclusão Social da FDSBC, a especialista lembra que o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, conhecido pela sigla Sinase, está articulado com um conjunto de políticas públicas voltadas à cidadania plena das crianças e dos adolescentes. “Quem vai fiscalizar a relação do Sinase com os gestores privados da Fundação Casa?” •
Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Martelo furioso’
CARTACAPITALMARTELOFURIOSO
BAIXE AQUI